Não acho que exista
ganho ao remexer coisas do passado. Tudo bem, admito que procurar pelos
primeiros sinais do fim possa garantir algumas horas de sono mais tranquilas,
mas existem certas coisas que devem ser deixadas para trás.
No meu caso, foi numa noite
qualquer, daquelas que somente são importantes quando analisamos lá pra frente.
Pode não ter sido o primeiro sinal, mas tenho certeza de que foi o mais
alarmante. É estranho como, na época, pareceu tão insignificante. Talvez eu tenha
escolhido ignorar os acontecimentos daquela pacata noite, pelo bem de nós dois.
Ou simplesmente não tenha notado o impacto que aquilo teria em minha vida.
Fomos à festa de aniversário de
sua tia, a mais ou menos cinquenta minutos de casa. Era um daqueles condomínios
enormes, com shoppings e até farmácias. Poderia muito bem ser uma pequena cidade,
caso tivesse mais alguns estabelecimentos. “Quanto eles pagam para morar
aqui?”, lembro ter perguntado. Ninguém no carro soube responder, mas imaginei
que uma fortuna (na qual eu nunca possuiria). Era triste, pois os moradores
tinham que fazer tudo por lá, tamanho era o problema de distância e trânsito
até o centro da cidade. Mesmo após as dez da noite, era possível ver filas de
carros, parados, sem nenhuma esperança de andarem. Descartei qualquer
possibilidade de residir em um local como aquele. Era loucura manter-se
aprisionado daquele jeito.
Sentamos um uma mesa fora do
salão de festas, socializando com seus pais e familiares. Como gostávamos da
companhia um do outro, sempre tínhamos o que conversar, qualquer fosse o
assunto. Ultimamente, como estávamos avançando em nosso relacionamento,
começaram a surgir perguntas mais sérias, envolvendo o futuro de cada um,
principalmente. Sempre fomos muito abertos quanto a isso, flexíveis com os
nossos possíveis destinos juntos.
“Como podem viver aqui, sem sair
para lugar algum?”
“É seguro, ao menos. Talvez seja
o lugar mais seguro para morar que eu conheça.”
“Tem que ser, oras! O preço de
um apartamento aqui deve ser surreal.”
“E é. Você não vai ver pessoas
aqui com carros populares ou relógios falsificados. Todos tem uma renda mensal
alta. Às vezes até alta demais.”
Ela tinha razão. O marido de sua
tia era cirurgião plástico, o que explicava aquela vida luxuosa.
“Onde você imagina estar daqui a
dez anos? Digo, criando sua família e tudo mais.”
“Bom, não aqui, tenho certeza.”
“É sério.”
“Você sabe que eu quero criar
meus filhos fora daqui.”
Eu sempre tive o sonho de criar
minha família no Canadá, seguindo sua cultura e seus costumes. Odiava o calor
daqui e toda a insegurança de andar na rua, não sabendo se algo de ruim
aconteceria comigo. Sempre preferi dormir com um edredon, envolto em um casulo
de aconchego. Já havíamos falado sobre isso em outras ocasiões, mas nunca com
esse tom de importância. Seus olhos diziam ter descoberto algo novo, como se
tivesse se dado conta do problema, de uma hora pra outra. Dois adolescentes com
tantos planos podem ignorar diversos fatores, inclusive os desejos um do outro.
“Eu quero ir com você, mas não
posso morar lá. Eu terei que viajar, devido a minha carreira e tudo mais, mas
não acho que poderia criar meus filhos longe de meus pais. Tudo o que eu tenho
está aqui. Você incluso. Claro, você estaria lá, mas minha família também é
importante para mim. Não posso simplesmente deixá-los de lado. Podemos ir sim
casualmente até lá, talvez duas vezes ao ano. Porém ficar definitivamente,
não.”
Possuímos sonhos completamente
diferentes. A proporção que aquilo havia tomado era catastrófica. Senti seu
olhar lentamente aceitar a ideia de que eu poderia não estar em seu futuro.
Tivemos muitas brigas e desentendimentos, mas agora era diferente. Somente
olhamos um para o outro e entendemos que o futuro era incerto, até mesmo para
nós dois.
“Então o que a gente faz? Não
sei se mudarei tanto assim ao ponto de deixar isso de lado. Eu quero ficar com
você, mas não sei até que ponto isso vai influenciar nos nossos sonhos.”
“A gente vai fazer dar certo.”
Quase não reconheci sua voz.
Havia sempre uma perseverança nela, como se quando o assunto era a gente, nada
iria ficar em nosso caminho. Como se nada fosse impossível. Porém, o caminho
não era mais nosso. A partir dali, andávamos em direções opostas. Dessa vez,
sua voz não possuía qualquer tipo convicção. Penso que nem mesmo ela acreditava
em suas palavras.
Ficamos nos olhando por um
tempo, até que assentimos nossa situação. O silêncio se instalou por algum
tempo. Restou-nos olhar para o céu estrelado. Passeamos para esquecer esse
assunto, mas duvido muito que algum de nós tenha deixado isso de lado, ao menos
naquela noite. Fora a primeira vez que sentimos na pele o quão difícil era
estar apaixonado.
Saímos de lá diferentes. As
certezas já não eram mais tão certas assim. Tentávamos fingir que nada havia
mudado, que continuaríamos juntos até o fim. Só não esperávamos que o fim
estaria tão próximo.
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