Ela tinha uma
cachorra, com um nome um tanto quanto peculiar: Kira. Sempre achei que fosse
uma palavra japonesa, embora duvido muito que tenha se baseado nisso. Escrevendo
isso, percebo que nunca cheguei a perguntar sobre a origem, na verdade. Ela já
estava velha quando a conheci, em idade de cachorro. Talvez oito? Não sei. Não
lembro.
No começo, ela me deu
bastante trabalho. Não deve ter curtido minha cara, ou que estava passando
demasiado tempo por ali, pois sempre rosnava para mim, principalmente quando
estava perto de sua dona. Depois de um tempo, acho que se acostumou com minha
presença. Gradativamente, passou a brincar comigo e até deixar que eu a
acariciasse. Costumava já ficar deitada no chão, com a barriga para cima,
esperando minha mão a massagear. Apesar da idade, ainda parecia um pequeno
bebê, de tanto que corria e bagunçava a casa. Desengonçada, sempre quebrava
alguma coisa. Não importava o que era, fosse uma mesa ou um vaso. Queria uma
atenção contínua, e até brigava com a dona para não parar de recebê-la. Não
machucaria uma mosca, de tão calma. Uma vez, quando estava guardando a casa de
férias, deixou dois bandidos entrarem, ao troco de uma bola que lhes deram. Foi
encontrada ainda brincando com ela, quando todos voltaram para a casa. Às vezes,
enquanto ela estava dormindo, eu a espiava. Ficava ali, parado, só observando a
rapidez com que respirava. Logo me notava, embora eu fizesse o mínimo de
barulho. Olhava fixamente para mim por cinco segundos, para rapidamente correr
e me derrubar. Seus pelos sempre estavam em minhas roupas, mesmo que o chão
fosse preto de sua pelugem. Seu maior medo era o trovão. Em todas as
tempestades, dormia com a gente no quarto, escondida no canto da parede. Do
contrário, latidos seriam escutados durante toda a madrugada. Não preciso dizer
a afeição que criei por aquele cão.
Acho que nunca vou esquecer o
último dia em que vi aquela mansa companheira. Estava escuro, com alguns poucos
postes funcionando na rua. A memória já começa a pregar peças em mim, então não
lembrarei exatamente o que estava fazendo. Somente recordo que estava perto de
sua casa, com a noite já dominando o caminho. Avistei seu padrasto de longe,
passeando com ela, sem a coleira. Por alguns segundos, pensei que iria disparar
até mim, fazendo com que eu quase caísse. No entanto, ela não me notou. Ou pelo
menos não viu até que eu estivesse perto demais. Talvez meu cheiro tivesse
mudado, assim sendo impossível para que ela me reconhecesse. Inventei diversas
desculpas para aquilo acontecer, mas logo percebi o inevitável: eu fora
esquecido. Meu cheiro, uma vez distinguido a metros de distância, fora
esquecido. Meu toque, esquecido. Não a culpo, enfim. Era questão de tempo até isso finalmente acontecer. Só não achei que seria tão rápido. Coloquei minhas mãos sobre suas
costas uma última vez e a massageei. Por um breve momento, pude jurar que ela
me reconhecera, mas logo olhou para a rua e desviou sua atenção. Foi perseguir
um pombo até a esquina. Olhei por algum tempo, até que me despedi e fui andando.
Seus pelos ainda residiam em minha mão. Bati minhas mãos e segui caminho. De
longe, ouvi seu latido. Parecia mais um trovão.
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